Por: J. Cruz*
No último 15/11 Estância perdeu um cidadão bastante querido pelos estancianos. Um ser humano íntegro, que em vida dedicou-se ao trabalho e à construção de um legado de honradez e dignidade. Mesmo sendo um lagartense, veio para Estância acompanhado de seus pais com apenas dois anos de idade. Em Estância de criança chegou à vida adulta, onde estudou e começou a sua vida profissional trabalhando na antiga fábrica Santa Cruz. No início dos anos cinquenta do século passado, ainda bastante jovem, resolveu tentar a sorte em São Paulo onde trabalhou na CMTC – Companhia Municipal de Transporte Coletivo. Na década de sessenta retornou a Estância e voltou a trabalhar nas empresas da família Leite onde exerceu diversas funções chegando a ser diretor administrativo das emissoras de rádio: Esperança de Estância e a antiga Jornal de Aracaju e chefe de Gabinete do ex-deputado Ivan Leite.
Era um cidadão de memória privilegiada e por isso um verdadeiro memorialista. Lembrava de fatos ocorridos desde o seu tempo de criança e até a idade adulta. Em suas lembranças sempre relatava que começou a estudar “em 1938 com uma professora particular no sobrado do fundo da Catedral (Estância), cujo nome era Maria Constância. Em 1939, passei para o grupo Escolar Gumercindo Bessa, professora Márcia conhecida por Sassá e professora Cremildes Freire e no Colégio do grande professor Azarias Santos, a faculdade dos pobres de Estância e aí, os pobres encerravam os estudos. Após 9 anos sem estudar, fiz o curso de Administração nível médio em São Paulo e outros cursos. Daí em diante, já casado, apelei para autodidata, Deus tem me ajudado muito. Tive uma ajuda grande, quem me despertou para leitura foi a Papelaria Modelo localizada a Rua Capitão Salomão, vizinha a Padaria Lima, pertencia ao Senhor João Nascimento”. Convém ressaltar que em 1938 que andava por Estância era o famoso escritor, Jorge Amado, que havia se tornado amicíssimo de João Nascimento.
Entre suas atividades políticas (chegou à presidência de diretório municipal) e sociais podemos destacar que além de se envolver na administração do Esporte Santa Cruz e incentivar a criação de Associações de Moradores, fez parte da Diretoria do Rotary Clube de Estância chegando a ser presidente. Colaborou com a Escola de Samba Mangueira e com a Liga de Futebol Amador da Zona Sul e em inúmeras participações em ações sociais. Outra paixão era a música, principalmente a Lira Carlos Gomes, sendo um músico exigente e também um grande clarinetista. Começou sua vida musical na Filarmônica Recreio (atualmente extinta) e depois de muitos anos foi para Associação Musical Lira Carlos Gomes, onde passou vinte e sete anos como presidente, vindo a se afastar do cargo em 2021, mas em assembleia a nova Diretoria lhe concedeu o título de Presidente de Honra.
Outra paixão era o Flamengo e ele relatava que começou a ser flamenguista da seguinte forma: “sempre que chegava à Padaria Lima onde meu pai trabalhava, pela proximidade com a Papelaria, saindo de uma porta entrava na Padaria e vice versa, que também vendia livros Escolares. O Senhor João Nascimento conhecia meu pai como funcionário da Padaria, dava-me bom dia que me foi ensinado por ele, este ensinamento foi muito importante na minha vida, tinha oito anos, me disse que bom dia, boa tarde e boa noite é a primeira saudação, daí para a leitura foi fácil. Ele permitia que eu lesse os Jornais Locais e os do Rio de Janeiro, Diário da Noite e à Tarde da Bahia. Por esse gosto pela leitura, me tornei um Flamenguista desde 1942, início do primeiro tricampeonato carioca, 42-43 e 44, através do Jornal Diário da Noite, e também por outros Jornais que chegavam à Papelaria”.
Em seus relatos, ele comentava um fato bastante interessante, vejamos: “vou falar da prisão do Volta Secar. O massacre de Lampião foi em julho de 1938 na gruta do Angico, Poço Redondo, nem todos do bando morreram, muitos escaparam, o exemplo foi Volta Seca, que foi levado preso para Salvador, conseguiu fugir utilizando as estradas próximas ao litoral, mais difícil de ser encontrado, com todos seus conhecimentos de ter vivido sempre fugindo chegou à cidade de Santa Luzia, em 1943, quando passava pela Usina Priapú, uns 14 quilômetros distante da cidade, um vaqueiro desconfiou e partiu a cavalo, para avisar aos policiais. O cerco em Santa Luzia do Itanhy era fácil, foi mais ou menos às 14 horas, uma das estradas passava em frente à Igreja Matriz, não precisa dizer, os frequentadores sempre presentes, ao perceberem o movimento dos policiais, partiram para acompanhar, fomos contidos pelo Cabo dizendo educadamente que era uma missão perigosa, nós meninos fomos para os quintais de algumas casas que dava para ver tudo nitidamente, os policiais estavam a mais ou menos 50 metros. Volta Seca jogou um saco que trazia no chão e levantou os braços caminhando em direção aos policiais, entregando-se, a essa altura na porta da Delegacia já havia uma multidão. Comentava-se que Volta Seca, fazia dois anos que havia fugido, sofreu muito, fome e frio nas matas, não cometeu um crime neste percurso, o que pedia era comida e roupa e queria mesmo era se entregar”.
Depois de algum tempo, em um evento bastante concorrido, em 13 de dezembro de 2017, foi realizada sessão solene para a outorga do título de Cidadania Estanciana ao Sr. José Félix dos Santos. A solenidade ocorreu nas instalações do Centro Educativo Gonçalo Prado, por propositura do então vereador João Antônio Neri, resolução n° 5, de 25 de novembro de 1999 e o título foi aprovado em 16 de novembro de 1999. Durante a solenidade o homenageado em seu discurso de agradecimento finalizou falando o seguinte: “Por essas atividades citadas me credenciam a dizer que tenho muitos amigos, 165 afilhados, já apadrinhei dois casamentos de afilhados, inimigos nenhum, sou feliz em minha Estância. Estância, muito obrigado a todos irmãos estancianos, obrigado a todos os presentes, muito obrigado, obrigado mesmo aos ilustres vereadores João Neri pelo o Título de Cidadania Estanciana, e ao Vereador Dionísio Almeida Neto pela Medalha de honra ao Mérito, a primazia de ser o primeiro a receber, posso olhar todos os estancianos como irmãos de fato e de direito. Obrigado que Deus nos abençoe!”
Assim sempre foi José Felix dos Santos, um cidadão “boa praça” que sempre procurou servir a todos independentes de picuinhas que recentemente nos deixou aos 92 anos que em vida sempre esteve preocupado com o Brasil, à Estância e seus amigos. Descanse em paz!
*J. Cruz é estanciano, historiador, pesquisador e escritor.