Para início de conversa devo dizer que Aracaju tem Plano Diretor, mas somente na teoria.
O fato é que o Plano Diretor que vigora em Aracaju foi aprovado e promulgado no ano 2000. Sem contar que para que o projeto de lei chegasse à Câmara Municipal no ano 2000, os estudos realizados foram iniciados em 1995. Ou seja, Aracaju está com um Plano Diretor defasado em 25 anos. Isso é vergonhoso para os últimos prefeitos e para a expressiva maioria dos vereadores das últimas legislaturas de Aracaju.
Além disso, outro fato piora o cenário do planejamento urbano da capital sergipana: não existem códigos complementares pós Plano Diretor. Embora no mesmo ano em que o Plano Diretor foi aprovado, também entraram em vigor o Código de Obras e Edificações e o Código de Urbanismo (Leis Complementares 043 e 044, respectivamente), em 2002, através da Lei Complementar 058/02, os códigos foram revogados e os códigos correspondentes do ano de 1966 foram revigorados.
Assim, Aracaju, hoje, tem um Plano Diretor inócuo e uma série de leis anteriores e posteriores, formando uma verdadeira colcha de retalhos, num cenário ideal para o mercado imobiliário.
Feitas estas explicações iniciais, podemos começar afirmando que se Aracaju tivesse um Plano Diretor atualizado, factível e fiscalizado, com certeza estaria mais preparada para lidar com o coronavírus, especialmente nos bairros mais periféricos e onde residem os trabalhadores e o povo mais pobre.
E qual é a relação de um bom e atualizado Plano Diretor com a pandemia causada pelo coronavírus?
Se Aracaju tivesse um Plano Diretor – e também os códigos complementares – atualizado, construído democraticamente, com a ampla participação popular, estaria ela (Aracaju) muito mais preparada em termos de infraestrutura, de mobilidade, de acessibilidade, de saneamento básico, de habitação, o que daria à sua população, sobretudo a mais pobre e mais periférica, muito mais condições de resistência contra o vírus.
Com isso podemos afirmar que se Aracaju aprovasse a toque de caixa e a repique de sino um novo Plano Diretor e novos códigos complementares, iria poder enfrentar melhor o coronavírus? Claro que não é assim tão simples. Se assim fosse a maioria dos municípios brasileiros teria corrido para assim proceder, pois os problemas de planejamento urbano estão presentes em grande parte das cidades.
Entretanto, se Aracaju viesse, ao longo dos últimos 20 anos, realizando as revisões do Plano Diretor, criando os novos códigos complementares, realizando obras estruturantes e impondo a toda população, sobretudo às construtoras, regras mais rigorosas, a cidade estaria muito mais preparada para um momento como este pelo qual passamos.
Vejamos alguns exemplos: na mobilidade urbana, se nos últimos 20 anos Aracaju tivesse preparado o seu sistema viário, fazendo uma clara opção pelo transporte coletivo, utilizando os seus vários modais (ciclovias, hidrovias, faixas exclusivas, bilhetagem eletrônica temporizada, o que tornaria os transbordos nos terminais de integração desnecessários), com sistema licitado e, com passagens gratuitas ou subsidiadas, com certeza os trabalhadores não estariam viajando em ônibus sucateados, demorados, superlotados, sujos, num sistema viciado, onde a autoridade maior, na prática, são as empresas autorizadas.
No saneamento básico, que é composto por a) abastecimento de água potável, b) esgotamento sanitário, c) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e d) drenagem e manejo de águas pluviais, tendo o município um Plano Diretor atualizado e o Plano de Saneamento real, os problemas de abastecimento de água, especialmente nos bairros mais afastados poderiam ser contornados.
Na redução do déficit habitacional e na opção por construir e financiar imóveis para uma grande variedade de faixas salariais, se houvesse efetivamente prioridade pela população mais pobre, com certeza o distanciamento social, também nos bairros mais pobres poderia ser menos traumático. Imóveis maiores, cómodos maiores, calçadas e vias mais amplas e com saneamento, favoreceriam os cuidados da população.
Na utilização dos espaços públicos, se houvesse regra clara e dura para tratar das transformações dos espaços públicos, nem nas áreas nobres, nem nas áreas pobres, as ocupações não seriam caóticas. Com praças, canteiros e áreas verdes mais espaçosos e em maior quantidade, a circulação das pessoas que precisassem sair, ainda que em época de confinamento, seria menos aglomerada.
A este respeito se engana quem pensa que a ocupação do espaço urbano é caótica apenas nos bairros pobres, nas ocupações irregulares ou nos loteamentos clandestinos. Também nas áreas ditas nobres as vias e os espaços são mínimos. As áreas comuns, verdes e de circulação são as menores possíveis. O mercado imobiliário, no afã de maximizar o lucro, aumentando a quantidade de unidades, deixa para fora pequenos pedaços. Isso ocorre inclusive nos condomínios verticais e horizontais.
Podemos citar ainda a questão ambiental. Está comprovado, mesmo antes do coronavírus, que o ataque do ser humano à flora e à fauna locais tem forte relação com a chegada de várias doenças nas áreas urbanas. Sem Plano Diretor ou tendo-o, mas não havendo fiscalização, a destruição ambiental é constante e permanente. O desequilíbrio ambiental é algo que atinge todos os continentes e já preocupa especialista no mundo inteiro. Cada ave, cada animal, cada planta, cada inseto têm as suas funções na natureza. Interferir na cadeia alimentar, eliminando espécies da flora ou da fauna, ou pelo menos dificultando a sua existência, pode ser uma das causas que tem feito do ser humano hospedeiro de vírus que antes existiam somente em outras espécies animais.
A preservação ambiental é tarefa também do Plano Diretor. E a ocupação do espaço urbano, com ganância ou por ignorância, é incompatível com a preservação e com o equilíbrio ambiental.
Aracaju poderia estar muito mais preparada para proteger os seus moradores, sobretudo os trabalhadores que mais precisam e aqueles que não podem ficar em casa, mas não está porque a percepção dos vereadores, nas últimas legislaturas, sobre as normas urbanas é praticamente nula, salvo raras exceções e os prefeitos que têm passado não têm a mínima preocupação com o planejamento urbano, e, em alguns casos, até trabalham contra a cidade. E, para piorar, pequenos, mas poderosos segmentos, como construtoras e empresas de ônibus, exercem um extraordinário poder sobre grande parte dos políticos de Aracaju. Soma-se a isso o afastamento da população a essas questões, está posto o cenário ideal para a cidade ficar como está ou até mesmo piorar.
JOSÉ FIRMO DOS SANTOS
Coordenador do Fórum em Defesa da Grande Aracaju.