Aracaju, 27 de janeiro de 2025
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Em Estância, no “milagre dos passarinhos”: o Cruzeiro da Cabeça do Boi

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Acrísio Gonçalves de Oliveira*

Nessa região já havia uma Santa Cruz desde a década de 1870, quer dizer, uma capelinha denominada “Santa da Cabeça do Boi”. Geralmente nas povoações uma cruz costumava ser fincada ao chão pelas pessoas sinalizando a morte, muitas vezes trágica, de um ente querido. Conforme o livro Santa Luzia do Itanhy – Primórdios de Sergipe, “era comum as pessoas utilizarem como cemitério o terreno onde se localizavam as capelinhas. Elas passariam a se tornar ponto de devoção, lugar de pagamento de promessas e, principalmente, de realização de novenários”. A Santa Cruz da Cabeça do Boi pode ter sido uma desses exemplos. Hoje ainda é possível ver uma dessas cruzes na beirada de uma rodovia qualquer.

No começo dos anos 1920, levaram o altar da referida Santa Cruz para a Matriz da cidade e o colocaram em sua lateral para ser reformado. Isso aconteceu por conta de uma promessa feita por um comerciante devoto.

Desde a segunda metade do século XIX as pessoas já se dirigiam em procissão à capelinha em busca de um milagre. Local de referência, alguns documentos apontam que havia a “estrada real” que levava à Cabeça do Boi. O lugar chegou a servir de marco entre a região urbana e suburbana da cidade.

O Cruzeiro da Cabeça do Boi foi implantado há mais de um século pelo santeiro Filadelfo José Gonçalves. Certamente por uma graça recebida, por sua iniciativa, resolveu benzer uma cruz para ser colocada ali, no mais alto morro da localidade. Conforme o escritor Oswaldo Freire da Fonseca, o citado artista, de tão hábil que era com a feitura de imagens de santo, que “em menos de uma hora, com um simples canivete, transformava um pedaço inexpressivo de casca de cajazeira em uma delicada figura de um Menino-Jesus”. Filadelfo se consagrou como um dos grandes carnavalescos estancianos da primeira metade dos anos 1900, pois de acordo com o livro Estância Secular, era ele que fazia os melhores carros alegóricos da cidade.

O citado escritor de Estância Folclórica, mesmo dizendo em seu livro que o mês e o ano da implantação do Cruzeiro escaparam-lhe à memória, por outro lado nunca saiu da lembrança a sua partida em direção à Cabeça do Boi: “O dia acertado amanheceu lindo. Os pequenos sinos da Amparo [Igreja], de vozes assanhadas, foram repicados muitas vezes, lembrando a procissão que iria sair. A praça ficou apinhada”. O autor, que na época era molecote, lembra-se ainda que, devido ao tal cruzeiro ter sido o primeiro daquela região, após terem-no fincado no cume do morro, em “seu pé ficou uma velaria sem conta tremeluzindo ao sabor de uma viração tão camarada que parecia encomendada para aquela tarde de céu azulíssimo”. Ali houve oração, quem sabe até com joelhos postos ao chão.

Com relação ao dia e ao ano que disse ter escapado da memória, nós encontramos a data precisa. Ocorreu exatamente em 16 de setembro de 1923 (de fato, um domingo!). Os braços do Cruzeiro eram voltados para a cidade, como se dali a protegesse.

Meio século depois, nos anos 1970, a imprensa – pelo fato de o Cruzeiro se encontrar sem os ditos braços – denunciaria seu abandono por parte do município. Na época o Cruzeiro foi chamado “marco indelével”, ou seja, um marco que nunca deveria ser extinto. A imprensa também afirmou que ali era lugar de “promessas dos fiéis” por sempre existirem fitas e outros objetos em seu pé. Infelizmente, não sabemos se o sagrado Cruzeiro teve digno tratamento à altura religiosa da fé que os estancianos depositavam nele.

Cumpre-nos informar que do lado direito do morro havia os famosos “bonecos de Lesbão” (José Elesbão do Nascimento). Esse era um mágico artesão morador da região da feira da cidade (Beco das Panelas), proprietário de uma olaria e dono das terras onde se encontravam os referidos bonecos. Os tais “bonecos” fizeram história. Elesbão, oleiro-artista, em muito contribuiu para a religiosidade que havia no morro. A pedido de alguns devotos, ele costumava fazer braços, pernas e cabeças humanas de barro para serem benzidas no Cruzeiro. Quem sabe, os “objetos em seu pé” registrados pela imprensa daqueles anos fossem as peças de barro do memorável artista. Tudo era assado no forno de sua olaria… (CONTINUA).

*Acrísio Gonçalves de Oliveira, pesquisador, professor do Estado e da Rede Pública de Estância

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